top of page

Um recorte da memória

Em 1989, eu tinha 14 anos de idade. Mais fã das aulas de história, até mesmo mais do que das de gramática e literatura, lembro o quanto me dei bem nas provas do segundo bimestre. Estudávamos a Guerra Fria justo no momento em que die Mauer (o muro) caía. A imagem nos telejornais de jovens dançando sobre escombros era poética, rock'nroll puro. Eu estava naquela festa, sabia que testemunhava um momento histórico e queria entender este meu desejo adolescente de abraçar toda euforia dos jovens alemães. O que era muito natural, já que nossa primeira década inteiramente livre do regime militar foi assimilada por mim, com fervor. Tipo ouvir palavrões nos programas e nas músicas já era incrível, imagine esta cena então.

Contribuiu para esta comoção ingênua um texto que até hoje guardo. Não anotei no recorte o nome do jornal que o reproduziu, mas pelas preferências do meu pai, suponho que foi de O Globo ou do Jornal do Brasil. No entanto, está assinado por Michael Shuman, professor convidado (na época) do Instituto de Estudos Políticos (Washington), que escreveu para o The New York Times. Entrelinhas à parte, o mais importante disso tudo é que há 20 anos atrás, eu começava a me tornar adulta e solidava minhas ideias políticas. E esse recorte fala dessa história.

Fui de Gorbachev (aquele careca gordinho e pop com um mapa na cabeça) a Gandhi, passando por Fidel na pequena biblioteca escolar aqui de casa(uma coleção chamada Grandes Líderes, da editora Abril, se não me engano). Li (sim, eu lia tudo que meu pai colocava na estante) e cheguei à conclusão de que a liberdade só é válida quando conquistada individualmente e de forma coletiva ao mesmo tempo.

Também entendi que quando depositamos em apenas um homem o papel de herói, damos a ele a nossa liberdade de lutar e a algemamos à demagogia de qualquer espertalhão. Este poder é nosso. E tão potente que não podemos passar uma existência sem utilizá-lo. Desde então passei a me simpatizar com as coisas que saíam da linha, pela marginalidade e pela contra-cultura que já estava em mim desde a infância.

Em outras palavras, aqueles dias em que os noticiários me emocionavam foram os primeiros sopros da superação do pensamento maniqueísta e distraído da minha adolescência. Caiu o muro que dividia direita e esquerda. Caiu o muro que dividia leste e oeste. Caiu o muro do bem e do mal. Caiu o muro que dividia herói e bandido. Caiu o muro que dividia criança e adulto. Eu lia Cléo e Daniel (Roberto Freire, psicólogo, não o político) e começava a entender que as “forças repressoras” estavam em todo lugar. É bem verdade que, como sou de uma geração ressentida, niilista e fútil, só fiz umas besteiras próprias da idade. Mas a sementinha havia sido plantada ali vendo o muro cair ao som do rock'n'roll na minha cabeça.

Hallo Lennon!

*Cópia do texto de Michael Shuman

Meus amigos e eu não ficamos totalmente surpresos na noite em que o Muro de Berlin caiu. Em 1979, nós éramos estudantes em Berlim, participando de um programa de intercâmbio da universidade de Stanford. Freqüentemente passávamos pelo Checkpoint Charlie em direção a Berlim Oriental, e lá nós conseguimos desenvolver um círculo bastante íntimo de amizades. Estes laços nos convenceram de que os dias de Guerra Fria já estavam contados.

Nós e nossos amigos alemães-orientais compartilhávamos de uma quantidade grande demais de interesses para nos mantermos eternamente afastados. Nós ouvíamos e dançávamos ao som dos Beatles, em transmissões vindas de uma estação de rádio do lado oriental. Nós curtíamos as peças de Bertolt Brecht e os textos assinados por Ulrich Plenzdorf. Alguns de nós se apaixonaram. Ao longo de muitas canecas de cerveja, fazíamos troca de tudo – Jimmy Carter, Erich Honecker, o materialismo ocidental, os chavões comunistas e, obviamente, “die Mauer”, o muro.

Para nós, e desconfio que para outros jovens do mundo inteiro, a Guerra Fria foi um jogo. Os nossos governos, de um e do outro lado, emitiam regras rígidas. É preciso elogiar o nosso sistema e é igualmente preciso falar mal do sistema do outro lado. É preciso garantir que não se fique para trás quanto aos números do outro lado, os números dos tanques, das bombas nucleares e dos projéteis com gases tóxicos. Não se pode assumir compromissos, nem tomar atitudes unilaterais em prol da paz. E independentemente do que se possa fazer, mantenha-se sempre afastado do pessoal do lado de lá, caso contrário você pode ser corrompido ou enganado.

Apesar de todas as regras, no entanto, decidi retomar contato outra vez com o bloco oriental. Em outubro de 1985, alguns meses após Mikhail Gorbachev ter-se tornado secretário-geral do Partido, realizei a minha primeira viagem à União Soviética. Cada um das dúzias de jovens russos, ucranianos e armênios que encontrei, estava comprometido com a democratização e manifestava uma profunda oposição à Guerra no Afeganistão. Eles se mostravam ansiosos por encontrar norte-americanos e sonhavam viajar para fora do país deles. Um adolescente se aproximou de mim e cantou a letra inteira de Born in the U.S.A., de Bruce Springsteen.

Fiquei impressionado com a profundidade das mudanças que estavam ocorrendo na União Soviética a nível social e cultural. Esses jovens estavam crescendo em cidades equipadas com confortos materiais totalmente desconhecidos pelos seus pais, mas agindo com o mesmo grau de rebeldia dos seus equivalentes etários na Europa Ocidental e na América.

Eles faziam experiências com a maconha vinda do Afeganistão, ouviam música de rock, se vestiam no estilo new wave e participavam de atividades da contracultura ou da cultura da saúde como as corridas de cooper, as massagens e curas psíquicas. E apesar de todo o seu treinamento ideológico, estes jovens estavam abraçando Lennon, não Lenin.

Retornei à União Soviética em junho último, espantado não apenas com a rapidez das mudanças ocorridas desde 1985 mas também com o papel liderante atualmente desempenhado pelos jovens. Nas praças o centro de Moscou, jovens panfletistas estão agora exigindo a criação de partidos políticos múltiplos. Em Leningrado, jovens ecologistas estão exigindo a limpeza do sistema de água. No parque Gorky, nos juntamos a milhares de jovens soviéticos que dançavam ao som das canções antiapartheid contidas no álbum Graceland de Paul Simon.

Em toda União soviética e na Europa Oriental, o que se vê é uma geração inquieta. Trata-se de uma geração que usa jeans, jaquetas de couro e camisetas com dizeres sacrílegos, e que ouve o The Cure, o The Who e o Bon Jovi. Trata-se de uma geração cujo anseio é se encontrar, festejar, trabalhar e comercializar com outros jovens do mundo inteiro.

Trata-se de uma geração alfabetizada em termos de computação e que se dedica até altas horas da noite às tentativas de encontrar meios de acesso a computadores pessoais do mundo inteiro. Independentemente do que possa acontecer a Mikhail Gorbachev ou a Hans Modrow, trata-se de uma geração que, como seus equivalentes chineses na Praça Tiananmen, continuará pressionando para ter mais liberdade e justiça.

Os jovens, de um e do outro lado, não estão preocupados em saber quem venceu a Guerra Fria. Existem culpas em quantidade mais do que suficiente para serem distribuídas. Nós nos importamos apenas com o fato de que este jogo terminou – e queremos que a situação continue assim.

E dançar sobre o muro de Berlim foi apenas o início. Equipados com boom-boxes, Mac-Intoshes, gravadores de videocassete, walkmans, rádios e videofones, nós ultrapassaremos outras fronteiras de formas que nossos pais jamais julgaram ser possíveis. Nós iremos subverter a velha divisão ideológica e dar início ao difícil trabalho de abordar os verdadeiros problemas do mundo: o aquecimento do planeta e a pobreza do terceiro mundo.

Para os mais velhos do que nós, este é o final da história. Para nós é apenas o princípio.

Destaque
Tags
Nenhum tag.
bottom of page