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Querido D.,


Fossemos iugoslavos saberíamos que nosso país não é imortal. Como crianças que, tendo um pai vivo, são incapazes de entender a dimensão do fim da existência. Agora, por exemplo, países como a Sérvia não tem a pretensão de ser imortais. Como será viver assim em tamanha lucidez? Ora, é o que sinto agora.

Morando num lugar maduro, que pensa a morte de forma obsessiva e física, na iminência de sumir via bomba atômica ou desastres naturais, como se uma porção de terra pudesse sumir do mapa, querido D., você deve ter uma ideia equívoca. Se a cartografia desse conta da existência, a filosofia talvez encontrasse utilidade uma vez livre dessa pretensão. Então não é nestes termos que falo.

O Brasil está à beira da morte e até já foi enterrado. Fomos relegados ao submundo, a covas e cavernas abertas por gafanhotos para este fim. Poucos de nós conseguiram escapar ao se disfarçar de macacos. Subimos nas copas de árvores de onde às vezes jogamos cascas de bananas para fazer despencar canalhas. Às vezes jogamos as verdes mesmo, duras como pedras. Mas bananas não matam ninguém. E a gente finge que não sabe que o mais adequado seria descer de lá, morder suas cabeças e cuspir fora os miolos.

Com tantas injustiças, meu amor, poderíamos fazer uma taxinomia inteira delas. De forma que, falar em beleza por aqui, soa com indecência. Pois só a moral para segurar o cabresto de uma vida assim. Ou o trabalho, um eufemismo de escravidão aqui. Tudo isso garante uma harmonia forjada a serviço do progresso. Mas eu te pergunto: para que?

Resta-nos, os poucos livres, deitar num pasto donde da grama mergulhamos no céu e nadamos com os urubus. Vez ou outra, caímos de volta estatelados no chão quando estes penetram tão fundo o azul que parece ir na direção de um furo na hidrosfera; como se fosse vazar todo o universo cravejado de estrelas. É assustador seus bicos com gosmas de saliva depois de farejarem a carniça. Mais uma vez fingimos, dessa vez que não se trata de nós. Pois cremos que nossos sonhos tem um cheiro de cravo macerado com flores do campo que disfarça o cheiro.

Livres e, acima de tudo e todos, os urubus são os únicos felizes nesse Brasil. São amados sem que ninguém queira coloca-los em gaiolas. Num país onde tudo que é belo e bom deve ser privilégio para ter valor, ter carne podre na barriga enquanto voa bonito traduz uma estratégia eficaz para ser o que se faz ao invés de ser que se tem.

Eu sei que você nada entende. Nós tampouco e não temos a pretensão. Aguardamos ansiosamente o dia de enlouquecermos. E, se por obra divina, nossa vontade se satisfizer antes das suas férias, esperamos sinceramente reconhece-lo e ter um pouco de memória, o necessário pelo menos para resgatar o afeto. Um beijo,

Sua D.

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