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Vagamunda

a Blaise Cendrars

Como não sou inteligente o suficiente para ser uma funcionária pública, como sou indomável demais para a classe operária, como não sei lidar com o narcisismo de organizações políticas, como jamais teria saco para liderar seja o que quer que fosse, como tenho alergia a padronização, como fabrico o natural, como minha diplomacia não supera a ira que mora em minhas paixões, como o meu amor quimérico sempre assusta as pessoas, como a incompreensão me acompanha feito uma maldição, como carrego minha maldição como um troféu, como a coerência é uma obsessão infantil em mim, como não sei passear de coleiras, como não me adapto e sou intolerante com injustiças, como não temo a solidão, como me tornei grande catedrática em carências, como meus dentes estão sempre afiados para morder quem me afaga, como me entedio facilmente, como minha ambição é gaiata, como subverto rotinas e esse é meu único esporte, como a minha alma não se importa com o meu corpo, eu estou me preparando para ser uma apátrida. Talvez, quem sabe, me filiar a alguma etnia cigana do leste europeu... Mas não.

Muito longe. Não terei como chegar até eles...

Talvez deva me preparar para aprender a encantar incautos, ter sempre um sorriso bonito, uma melancolia de abandono e um desamparo que seria a própria expressão da minha fome. Então, nas raras vezes em que o desejo desse trégua a um bom banquete, eu o descreveria com tamanha euforia e poesia que vez ou outra algum mecenas patrocinaria meu aluguel só para me ver ter a liberdade que ele desconhecesse. E viveria assim, feliz feito um elefante africano; que quando senta numa poça de lama esmaga formigas com ferrões e tudo sem nunca se dar conta, só sentindo uma coceirinha de longe.

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