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A um mandarim


Querido B.,

Às vezes acontece da gente entrar numa livraria e não conseguir deixar um livro para trás. Não estou falando do autor ou obra dos seus sonhos, mas um título, uma diagramação, uma frase, um tema, um capítulo, que você diz: TENHO QUE TER! E isto acontece às vezes com assuntos teóricos (o que é mais engraçado ainda porque não sou acadêmica). Comigo aconteceu duas vezes: com A Necessidade da Arte, de Ernst Fischer, e A Estrela da Manhã – Surrealismo e Marxismo, de Michael Lowy.

Enquanto a farsa do impeachment da presidenta Dilma Rousseff comia solta, o capítulo de Pierre Naville foi minha passagem rumo a Paris Imaginária, um esconderijo que inventei para momentos como este em que a esperança silencia a tal ponto que sinto a morte sussurrar no meu cangote estalando cada vértebra.

Bom, minha estadia lá está documentada no tumblr. Mas adianto que conheci personagens interessantíssimos e passei bons momentos com Colette e Simone Breton. Além de um flerte profundo com Naville, claro. Conversamos muito sobre o que seria uma literatura revolucionária e estas coisas que me fizeram ir para lá.

O fato é que já tenho este livro, o de Lowy, há tempos e nunca ouvi falar do autor. Até o dia de hoje. Uma editora anunciou o lançamento de outro livro deste cara. E, agora, à noite, encontrei um resumo dele sobre os últimos acontecimentos políticos brasileiros. Até vi seu rosto! Não é incrível eu usá-lo para fugir da realidade e ser ele mesmo a me trazer de volta?

Bom, mas e daí? Não sei. Acho tudo isso meio mágico. Poderia pensar em algo mais elaborado caso Alcione, minha gata, não tivesse saído para uma voltinha de madrugada. E agora começou uma tempestade e ela não voltou. Verdade que foi eu quem autorizei quando abri a janela por onde costuma passar.

Agora, não consigo dormir. Eu remexia tantos livros e anotações que acabei incomodando a gata que despertou com desejo de madrugada. Ela só dorme tranquila enroscada em mim.

Li o dia inteiro sobre liberdade. Como não a deixar fazer aquilo que ama, que é perambular pelos telhados?

Agora, sob trovões sinto-me culpada. Embora saiba que Alcione desaprovaria meu sentimento. Ora, ela é livre. E como toda pessoa livre se responsabiliza pelos seus atos. Sim, mas ela não é uma pessoa...

Mais uma vez sei muito bem que a gata ficaria puta comigo. ACORDA!

Ela não é mesmo uma pessoa. É um felino, muito superior na escala de seres vivos (segundo suas convicções). Então, meu Deus! Tenho que me preocupar com as injustiças brasileiras, a violência policial e, agora, com uma gata intrépida? Não. Preciso largar essa coisa de querer controlar o que não é da minha conta.

Foi muito difícil para mim aceitar Alcione na minha vida. Ela chegou ainda criança na varanda aqui de casa, quebrou o presente que a Aninha me deu e não teve dificuldades de dormir enroscada no meu pé, então uma estranha para ela. Acordei com os dentinhos no dia seguinte fincando meus dedos querendo brincar. Fiquei morrendo de medo de me afeiçoar, principalmente pela beleza, pretinha de tudo feito uma sombra que ganhou vida. Então pensei... Vou deixar a porta aberta. Se ela ficar, é porque me escolheu e eu não terei como renegar isso. Se ela partir, é porque não era pra ser.

Pois bem. Ela partiu.

Um tempo depois apareceu como se nunca tivesse partido. De fato. Havia sido adotada pelo meu senhorio, que mora debaixo da minha casa. Achei aquilo perfeito. Eu não seria sua dona, mas sua amiga. Poderia usufruir de sua companhia sem muitas responsabilidades e expectativas. E assim foi até um mês atrás, quando a matriarca da família morreu após uma cirurgia de redução de estômago.

Alcione, veio até mim e disse que agora minha casa seria a dela. Estava arrasada. Não avisou aos antigos donos nem eu também fui explicar porque ela não saía mais daqui. E tem sido assim uma relação informal. Só mudou o fato que tenho que alimentá-la.

Geralmente, trabalho em casa. Mas nestas duas semanas estou fazendo um job de produção. Daí fiquei muito tempo na rua fim de semana passado. Para agravar mais a situação, recebi a visita do meu irmão que durou uma semana. Alcione gosta dele, mas se irrita quando a rotina é alterada.

Então, faz alguns dias que ela tem esse hábito de sair no meio da madrugada. Parece muito inquieta. Antes, dormia a noite inteirinha e acordava tarde junto comigo. Agora, essa boemia.

Não consigo deixar de me preocupar. É sempre essa meleca de aprender a amar gatos. Entender que o fato de haver um sentimento, não te faz responsável pelas escolhas do outro. E, ao mesmo tempo, ter que lidar com essa carência incrível que o bichano revela em você.

Outro dia, acordei no meio da noite e senti muito frio sem ela encostada em mim. Tive um sono péssimo, horas acordada pensando mil desastres. A piriguete, pra piorar, só voltou às duas da tarde do dia seguinte. Confesso, não sem me sentir um bocado idiota, que chorei duas vezes.

Ah, Alcione voltou nesse momento! Me fez sair na varanda de calcinha. Já pensou se passa alguém na madrugada?

Eu escrevia esta carta e escutei o miado de quem passa aperto na chuva. Ela não conseguia voltar pela janela, o que não entendi. Agora, meio molhada, insiste em vir para cama e tomar banho de língua em cima das cobertas. Eu já falei com ela que está proibida de tomar banho em cima da cama. Mas levei uma dentada e machucou.

Voltamos a brigar, ela toca o terror na casa enquanto escrevo e acho que posso falar de arte e revolução de novo sem a paz que me angustiava.

Peguei o livro. Onde parei? Então aí... Não tem jeito. Caí numa citação de Benjamin que diz que “a ociosidade do perambulante é um protesto contra a divisão do trabalho”. Afe, voltamos a Alcione. Desisto de escrever um texto coerente. Desisto de adiantar o trabalho para amanhã. Se eu não dormir, ela também não dorme e pode quebrar a casa toda caçando os escassos insetos que sobraram aqui dentro depois da chuva.

E ficamos nós, eu e você, também assim, nesse chove e não molha, hein? Quem sabe um dia, se eu aprender a lidar com Alcione, crie coragem de deixá-lo fazer parte da minha vida também. Espero que até lá ainda esteja esperando minhas cartas e interessado em me ouvir... Mas isso é outra história.

Saudades,

Sempre sua,

D.

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