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Paris imaginária #1: fome.


Assim como certas experiências na vida, certos livros devem ter o seu momento certo para serem lidos. A primeira vez que tive o “Trópico de Câncer” nas minhas mãos, não conseguia sair da primeira página. Havia acabado “O Apanhador no campo de Centeio” e foi difícil, aos 19, pular para aquela atmosfera. Só depois, após a narrativa cinebiografada, que veio a “fome de Paris”. E eu, que o trazia de empréstimo de uma colega, nunca mais devolvi. Roubei mesmo.

Anos mais tarde, quando Roberta foi estudar na Sorbonne, falei para ela levar o exemplar e fazer comparações nos cantos em branco das páginas. Ela não escreveu muito. Decepcionada me disse que a Paris era imaginária, um lugar utópico, que não existia mais: o Quartier Latin, um reduto burguês e o que sobrou daquele tempo apenas pontos turísticos sem nenhuma gota do que havia nos embriagado.

Outros amigos estiveram na capital francesa. Disseram que tudo foi mágico. Mas só lendo Henry Miller para saber o que pessoas como eu e Roberta procurávamos. Caso tenha preguiça de ler, veja o filme “Henry e June” e entenderá a “fome de Paris”. Baseado no diário de Anäis Nin, o roteiro deixa muita coisa de fora. Foca no triângulo amoroso. O lance não é esse, nem June, interpretada pela afrodisíaca Uma Thurman, tampouco Anäis Nin, encarnada pela élfica Maria de Medeiros . Na época, fiquei encantada pelas personagens. E tão logo soube da veracidade de suas existências me pus a pesquisar sobre elas. Ótimo, serve para te iniciar. Mas é preciso de mais para despertar a “fome de Paris”.

Não encontrei nada de June. Compreensível, afinal ela era uma atriz de teatro pouco famosa. De Anäis, apesar desta estar entre grandes escritores só encontrei alguns comentários sobre a escritora, referências em outros filmes, o prefácio do exemplar que tenho de trópico de Câncer e um livro de bolso em que, num diário, ela narra a relação triangular. Não há muito dela traduzido, me parece. E de Henry me tornei fã...

A moral da história é que amor à primeira vista em literatura só pode acabar em “the end”. Para o caso ser duradouro, ele precisa causar repulsa, conflito e, depois, paixão. Porque bom mesmo é quando carregamos um livro até que ele nos quebre os tabus e preconceitos. Quando ele nos revela a verdadeira beleza que nem sempre coincide com a harmonia. A verdadeira literatura te dá fome e não enche sua barriga de gases. A delícia desse incômodo é o que buscamos.

Para deixar de ser um copo gelado de leite sem açúcar de leitora e me transformar neste copo de uísque on the rocks, precisei acreditar no ser humano, que existia vida inteligente ao norte da América (além de Bradbury). É uma verdadeira idiotice achar que ler americanos te levará à lavagem cerebral do Tio Sam. Primeiro, porque Henry Miller é um vagabundo, um expatriado, um canalha machista e livre. Segundo, que suas contradições e amoralidade são fruto da liberdade e falta de compromisso com porra nenhuma. Terceiro, que sempre há muito a aprender com quem devota toda uma vida ao prazer, à beleza e a literatura sem ligar para mais nada.

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