top of page

Existencialismo Felino


15 de janeiro de 2017

Querido E.,

Sabes bem que a alegria dos gatos vem da liberdade. E pensas que esta é associada à autossuficiência. Tudo errado. Ninguém é totalmente livre enquanto tiver que lidar com as consequências de cada escolha que faz. Pois estas não vêm com garantias de realizações de desejos e expectativas. Muito pelo contrário, detonam fatos, em sua maioria imprevisíveis. Há quem diga que nem Deus é livre. Logo, a liberdade é um coelho branco que sai da cartola para a gente continuar o show. E veja o que Alcione me disse: nem todos os gatos são felizes...

Quando cheguei de viagem, ela me recebeu com o coraçãozinho saltitante. Sabia que na mochila eu trazia de volta nossa rotina. Nos primeiros momentos, miava intrigada, como quem pergunta por onde andei. E ansiosa por resposta me cheirou e mordeu nervosa. Eu grito de dor e a pele magoada já guarda uma cicatriz. Eu entendo o que se passa. Cubro-a de carinhos. Mas ela ora rejeita, ora se esfrega, ora apenas me persegue e procura sempre sentar-se encostada em mim. Eu pergunto: “O que foi?”. E ela serena me responde: “não espero nada de você”. Horas depois, aplacada a saudade, conta que se divertiu muito desobedecendo a vizinha, a quem pedi o favor de manter o comedouro com ração fresca. Começo a desfazer a mala, e ela, com seu olhar que é só um risco, continua a contar sua semana. “Parece que passamos meses afastadas uma da outra... Andou chovendo...”. E Alcione diz ter sentido o peso de meu abandono na espinha. Porque em noites assim ela não sai e acompanha minhas leituras na sua cama quentinha com cheirinho de canela. Mas eu não estava aqui e nem toda casa só para ela adiantou... Que não adiantou eu deixar o Plexus do Henry Miller com folhas de pólen soft cheirosas aberto em cima da cama. Sozinha ela não gosta de ler.

Foi para o tanque gelado na área de serviço. Ficou sentada observando a água cair vertical na janela. Ali não pensou em nada e acreditou ter entrado em profunda meditação. Ou transe, como sempre.

Na primeira estiagem despertou e como que de reflexo pulou para fora da casa. Foi conversar com os morcegos, admirar as poças de água prateadas pelos postes... sentir entrar pelas garras o odor da lama. Provocou o cachorro Spike, arbitrou em brigas de gatos e acordou alguns pombos. Cansada e imunda, decidiu voltar para casa escura antes do amanhecer. Tentou fazer tudo ao contrário quando da minha presença. Sentou com a bunda suja no meu travesseiro e lá deixou sua marca após se lamber toda. Eu bem vi quando cheguei. E disse: “qual é, Alcione!”. Só agora obtive resposta.

Mas suas aventuras não terminaram por aí. Ela me falou que perdeu a conta do número de rabos de lagartixa arrancados. E que não teve dó da vida que tirou de um camundongo. Bem lembro dela se queixando do tal rato que sempre caçoava do seu olho fosco ao chama-la de caolha. “Pois bem, ele teve um fim merecido”, regozijou. E eu teria visto o belo ritual macabro que ela fez no meio da minha cozinha não fosse a “intrometida” da vizinha desfazê-lo escandalizada. (Alcione tem certeza que aprecio estas coisas, apesar de eu sempre dizer que tenho pavor.... É a segunda vez que traz uma caça para casa. Este é o ponto cego da nossa relação, comum em todas e provocado pela idealização).

Por outro lado, admitiu que o bicho começava a feder. E que a vizinha apenas prestava um favor... E o mau cheiro fez Alcione pensar que talvez não mais me veria. Seus olhos ficaram foscos nesse momento da narrativa. Percebi que ela se recordava da primeira tutora que faleceu e foi velada na sala, na presença de todos que a amavam, inclusive Alcione. Sempre achei que foi depois desse dia que ela me adotou. E percebendo a delicadeza daquele instante peguei-a no colo e abracei forte.

Mas ela se desvencilhou depressa com um miado estranho. Correu para o chão, ergueu a patinha, lambeu e forjou indiferença do mundo. Logo se recompôs e começou a correr pela casa e bailar para mostrar como tinha dado um jeito no rato. Que dançou com a muxiba do cadáver com a mesma graça que ele caçoava do seu olho fosco.

Explico que dispenso toda aquela cena. Que é nojento imaginar. E ela feito uma criança revela não entender o porquê de colocarem sua tutora durante horas na sala de estar já que humanos desprezam tanto os cadáveres assim. Eu fico sem palavras... Alcione se enfia na minha mão como um cafuné e me pede para deixar seu corpo no meio da cozinha caso ela morra antes de mim. Meu Deus, E., verdade! Como a ex tutora dela, posso sair dessa vida antes dessa gata.

“Qual de nós durará mais”? Lancei a questão. E Alcione me disse, mas não tenho certeza se concordo... “A que for mais infeliz. As pessoas mais infelizes economizam mais vida”. Resolvi parar por aqui... essas conversas com Alcione desgastam como a felicidade corrói o tempo! Ops, o que estou falando? Ela me confunde! Estou te escrevendo como quem busca parar i relógio... Certa de sua atenção, D.

Destaque
Tags
Nenhum tag.
bottom of page